Não há uma estatística exata, mas estima-se que existam, no Brasil, dezenas de milhões de imóveis irregulares. Ao contrário do que o nosso preconceito possa indicar, não só nas favelas e aglomerados se situam tais imóveis, tendo em vista a difundida prática de compra e venda ou troca por meio de contratos particulares e de escrituras públicas de cessão de posse. No universo de imóveis irregulares, se encontram galpões, fazendas, sítios, casas e até apartamentos em regiões nobres de grandes cidades.
Dentre tantas hipóteses, é preciso lembrar que um determinado imóvel pode ser considerado irregular pela ausência da certidão de baixa e construção (também conhecida por “habite-se”), pela existência de obras não aprovadas pelo respectivo município ou, o que nos interessa de perto, pelo fato de a propriedade imobiliária constar em nome de outra pessoa.
No último caso – o cidadão reside ou trabalha no local, há anos, mas o imóvel encontra-se registrado em nome de outra pessoa – a solução se dá, normalmente, pelo procedimento de usucapião, que visa exatamente regularizar a propriedade imobiliária, em decorrência da demonstração da posse mansa, pacífica e ininterrupta. Claro, tem por objetivo gerar estabilidade jurídica e permitir que a propriedade possa exercer uma função social, de maior dignidade.
O denominado instituto da usucapião é antigo, nasceu ainda no Direito Romano. No Brasil, se aprimora com certa frequência, se reinventa, na medida em que passa abarcar situações diversificadas, como a usucapião coletiva, a familiar e especial urbana.
O Código de Processo Civil (CPC) dá prosseguimento às inovações sobre este instituto, pois traz a hipótese de usucapião extrajudicial, isto é, a possibilidade de se reconhecer a propriedade imobiliária mesmo sem um processo judicial, mediante um procedimento administrativo junto ao Cartório de Registro de Imóveis. O objetivo principal é evidente: a desjudicialização. Ou, de modo mais singelo, visa a redução do número de processos judiciais, tendo em vista o grande estoque atual (algo em torno de 100 milhões de processos no Brasil).
A inovação veio com o art. 1.071 do CPC, ao dispor que: “sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado”. É bom lembrar que o CPC, na verdade, alterou a Lei de Registros Públicos (6.015/73), incluindo-se o art. 216-A.
Pouco tempo após a aprovação do CPC, foram formuladas muitas críticas à redação, tendo em vista que, pelo texto original, se o titular da propriedade (aquele cujo nome consta na matrícula) se mantivesse em silêncio, nada manifestando, sua inércia seria interpretado como discordância ao pedido de usucapião extrajudicial e, com isso, o procedimento deveria ser convertido em processo judicial. Nessa hipótese, de nada teria servido o procedimento administrativo. A doutrina alegou, portanto, ausência de efetividade da norma.
Por outro lado, alguns tentaram, a qualquer custo, conferir efetividade à usucapião extrajudicial. Passaram a interpretar que o titular da propriedade (aquele, do registro), não fosse sequer comunicado da existência do procedimento administrativo. À obviedade, esta “tese”, que visava a “simplificação do procedimento”, simplesmente ruiu, foi amplamente rejeitada, pois violava flagrantemente a Constituição, especialmente o princípio da publicidade, a garantia de ampla defesa e ao contraditório. À época, publicamos nossa opinião sobre o assunto, no Conjur[1].
Com o intuito de trazer efetividade à norma, mas sem desprezar as garantias constitucionais, a Lei 13.465/17 alterou a redação do art. 216-A da Lei de Registros Públicos. Com isso, a usucapião extrajudicial pode ganhar novo fôlego, tendo em vista que o titular da propriedade será comunicado da existência de um procedimento administrativo de usucapião.
Diferentemente da redação anterior, se o proprietário optar por não se manifestar, a postura de inércia deste será tida como de concordância. Veja-se a nova redação: “se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, o titular será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar consentimento expresso em quinze dias, interpretado o silêncio como concordância”.
Há, certamente, pequenas dúvidas sobre alguns aspectos da usucapião extrajudicial, tendo em vista se tratar de mudança legislativa recente. A doutrina, a jurisprudência e os oficiais dos Cartórios de Registro de Imóveis serão responsáveis por implementar, na prática, o inovador procedimento. Contudo, diante das inovações trazidas pelo CPC e pela Lei 13.465/17, esta inovação se torna bastante atrativa aos que pretendem regularizar seu imóvel, tendo em vista a possível redução de custos e a grande celeridade que trará.
Antônio Aurélio de Souza Viana é advogado especializado em Direito Imobiliário, Mestre pela Puc Minas e professor universitário (CEDIN e Puc Minas)
[1] https://www.conjur.com.br/2017-abr-19/minuta-cnj-usucapiao-extrajudicial-contraria-constituicao